Alvo histórico de injustiças e brutalidades, o corpo negro é a principal vítima da violência no Brasil: a cada 10 pessoas assassinadas, sete são pretas. Olhar para essa realidade e levá-la ao palco de forma dura e sangrenta seria uma escolha obvia, mas legítima. Entretanto, não é o que faz “Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã” – o espetáculo, que estreia em Belo Horizonte no dia 6 de junho, opta pelo realismo fantástico, trazendo uma abordagem original e poética a esse cotidiano atroz.
Em cena, Ailton Barros, Filipe Celestino e Jhonny Salaberg contam a história de um menino negro que mora na periferia e corre o mundo inteiro para salvar a sua vida. Com direção de Naruna Costa e dramaturgia de Salaberg, a peça estará em curta temporada no Galpão Cine Horto com exibições às sextas e sábados (20h) e domingos (19h), entre 6 e 15 de junho. Em paralelo, nos dias 11 e 12 de junho, será realizada a oficina de dramaturgia “A escrita entre o voo e o abismo”, conduzida por Salaberg. Toda a programação é gratuita. Mais abaixo o serviço completo.
Ao invés de optar por uma dramaturgia que coloca o dedo na ferida, “Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã” usa outros recursos para narrar a violência. “É por meio do realismo fantástico, do lúdico, da leveza que falamos da importância de resistir. O fantástico existe não para maquiar a questão, mas para mostrar o absurdo e o trágico da própria vida. A ideia é convidar o público a sentir essa ferida, a olhar para o tema com a atenção e o tempo que ele merece”, conta Jhonny Salaberg.
“A leveza também é uma forma de denunciar, de resistir, de lutar, de contar as nossas histórias de uma outra maneira, de resgatar nossas subjetividades e singularidades. Somos um coletivo de pessoas que resiste. E, para além da coletividade, estamos começando a olhar para as singularidades, resgatando a humanidade, contando as nossas histórias, com os nossos olhos.”
Por que a leveza é, também, denúncia
A dramaturgia foi construída com base no conceito Leveza proposto pelo escritor italiano Italo Calvino no livro “Seis propostas para o próximo milênio”. Neste conceito, Calvino sugere a busca da leveza como possibilidade de resistência, como reação ao peso do viver. Como falar de assuntos densos de maneira leve, mas sem descaracterizar a denúncia? Como ressignificar o noticiário? – essas são algumas das questões levantadas pelo espetáculo.
“Aqui a leveza escancara ainda mais o peso. Reinventa outras maneiras de contar a história”, salienta o dramaturgo. Segundo ele, já a questão do realismo fantástico, do absurdo, nada mais é que o espelhamento da própria vida. “Quando olhamos para a realidade de corpos pretos no Brasil, para como esses corpos são usados, no sentido físico, mercadológico, psicológico, é absurdo e trágico: são 111 tiros no Carandiru, são 80 tiros contra o carro de uma família que estava indo a um chá de bebe, são 300 metros arrastando uma mulher pelo camburão de uma viatura.”
Dor e esperança
Escrito há quase 10 anos, em 2016, “Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã”, atravessa o tempo e, infelizmente, se atualiza a cada nova temporada. “A população negra continua sendo alvejada – ainda não conseguimos sair da marca dos 23 minutos – espaço de tempo onde uma pessoa preta é assassinada por forças policiais no Brasil”, lembra Salaberg.
Por outro lado, por mais que a peça trate de um tema trágico, ela propõe um diálogo esperançoso, por vezes utópico, com o futuro. “Pensando lá na frente, quero que essa obra seja sobre algo que passou. Que a gente olhe para ela como um rastro da história.”
Adaptação para os palcos
Adaptar “Buraquinhos ou o Vento é Inimigo do Picumã” para os palcos foi muito especial, bonito e interessante, conta a diretora Naruna Costa. “Propus um caminho que partiu principalmente do texto, da palavra. Como a interação entre os atores foi muito presente pudemos escolher cada momento, cada frase que faria sentido para a cena. A partir daí construímos as imagens até chegar nesse universo lúdico, composto pelo cenário, pelos brinquedos dos parques infantis, pela textura do papel em branco, no qual tudo pode ser escrito. Imagens que traduzem uma narrativa que aborda uma história muito trágica, mas preservando sua ludicidade.”
A trilha sonora do espetáculo, apresentada ao vivo, é um destaque à parte, segundo a diretora. “Assinada pelos músicos Erica Navarro e Giovani Di Ganzá, ela foi construída ao longo dos ensaios, em um processo de criação conjunto com as cenas, assim como aconteceu com o figurino e a cenografia (de Eliseu Weide) e a iluminação (de Danielle Meireles). Foi algo que envolveu todos nós em um bonito processo de criação colaborativa”
Prêmios inéditos, público e trajetória
“Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã” reúne 10 troféus e duas indicações nas principais premiações do teatro brasileiro, como o APCA, Prêmio da Folha de S. Paulo e Aplauso Brasil. Entre as vitórias, o APCA de melhor direção para Naruna Costa, que fez história ao ser a primeira mulher negra a ganhar na categoria de melhor direção.
“Ganhar o APCA foi muito importante, é simbólico marcar presença, ocupar esses espaços. Mas, de alguma maneira, quando esses pioneirismos acontecem eles também revelam as estruturas – em mais de 30 anos do prêmio, o não reconhecimento ao trabalho de diretoras negras diz muito sobre a falta de percepção sobre essas criações. Faço teatro há mais de 20 anos no Grupo Clariô, na região periférica de São Paulo, mas meu nome só foi reconhecido quando eu passei a fazer um trabalho na região central, ou seja, revela uma falta de percepção.”
Para além dos prêmios, ressalta Jhonny Salaberg, “temos uma trajetória muito feliz com o espetáculo, sempre lotamos as apresentações, fomos muito bem recebidos pelo público e pela crítica. Por mais que a leveza esteja em cena, há sempre uma reação de choque e emoção forte da plateia – não no sentido de deixar as pessoas para baixo, mas de emocionar, de ventilar uma mensagem de esperança.”
Com diversas temporadas realizadas em São Paulo (capital e interior) e participação em oito festivais de artes cênicas, incluindo apresentações em Teresina (PI) e Florianópolis (SC), a peça representa um divisor de águas na carreira de Salaberg. “A dramaturgia extrapolou os palcos, foi para as universidades, fez parte de vestibulares para as escolas de teatro. Sempre recebo pedidos para a utilização do texto em sala de aula, o que me deixa muito feliz.”
Oficina de dramaturgia gratuita
Conduzida pelo dramaturgo Jhonny Salaberg, a oficina “A escrita entre o voo e o abismo” propõe uma experimentação dramatúrgica acerca de narrativas que permeiam situações de abismo, dialogando com a construção de uma palavra que alça voo e sugere uma curva de perspectiva. A oficina investigará as diversas e infinitas maneiras de reconstrução de um fato através da escrita para o teatro. Realizada nos dias 11 e 12 de junho (de 10h às 13h), no Galpão Cine Horto, a atividade é destinada a 15 alunos. Os interessados devem fazer a inscrição gratuita pelo link https://forms.gle/t58adEakmduvdSbo9 – a partir do dia 2 de junho.
SERVIÇO
“Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã”
6 à 15 de Junho
Sextas e Sábados às 20h | Domingos às 19h
Galpão Cine Horto | Rua Pitangui, 3613 – Horto – Belo Horizonte/MG
Gratuito | Retirada de ingressos 1h antes da sessão
Capacidade: 200 lugares
Duração: 90 minutos
Classificação indicativa: 14 anos
Oficina de Dramaturgia “A escrita entre o voo e o abismo”, com Jhonny Salaberg
Dias 11 e 12 de Junho
Quarta e Quinta | 10h às 13h
Galpão Cine Horto | Rua Pitangui, 3613 – Horto – Belo Horizonte/MG
Gratuito | Inscrições através do link: https://forms.gle/t58adEakmduvdSbo9 a partir do dia 02/06
Capacidade: 15 participantes
Seleção por ordem de inscrição
Ficha Técnica
Idealização e Dramaturgia: Jhonny Salaberg
Direção: Naruna Costa
Elenco: Ailton Barros, Filipe Celestino e Jhonny Salaberg
Músicos em cena: Erica Navarro e Giovani Di Ganzá
Preparação corporal: Tarina Quelho
Direção Musical: Giovani Di Ganzá
Cenografia e Figurino: Eliseu Weide
Desenho de luz: Daniele Meirelles
Operação de luz: Nayka Alexandre Eacjs
Identidade visual: Murilo Thaveira
Fotos: Alessandra Nohvais, João Silva, Juliana Vieira e Noelia Nájera
Cenotecnia: Douglas Vendramini
Assessoria de Imprensa: Mira Comunicação
Produção: Jack Santos – Corpo Rastreado
Siga nas redes Instagram: @buraquinhos
Facebook: Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã